[DESABAFO VANESSA LOPES E O PSIQUIATRA DELA — “doença”]
Vamos então iniciar oficialmente esse ano letivo, com muitas aspas nisso, claro. Já que, mesmo tendo uma programação anual e turmas, o que pretendo aqui é só fazer parte das suas formações intermináveis como analistas. E, sem querer soar muito pedante, que função complicada que é. Seria mais fácil se eu acreditasse que fosse possível ser apenas um psicanalista teórico, que mal pratica (ou pratica mal) mas consegue recitar no mais perfeito lacanês algo como o tema de hoje que é o objeto a.
Ao mesmo tempo, em uma das minhas práticas em um hospital psiquiátrico, de pouco me serve teoria lacaniana quando uma paciente, sem saber quem eu era, o que eu estava fazendo ali ou qual horror poderia trazer comigo, pergunta após eu me apresentar “e o que é que faz um psicanalista?”. Na clínica, a teoria não serve de nada. Na clínica, o ponto é estar ali, presente com o corpo, escutando o sujeito que está falando. Então minha resposta foi da mais douta ignorância possível: é alguém que quer te escutar como pessoa. De certa forma, não menti. Essa é a função do analista, se postar ali como um objeto vazio, para que o sujeito se depare, como se vindo de fora, sua história e também os seus furos narrativos, seus estranhos; encontro com a coisa mais figadal de seu ser.
E, nesse contexto clínico específico em que essa pergunta foi feita, em um filho de manicômio, apenas essa resposta tapada (palavra escolhida a dedo e já digo o porquê), possibilitou uma transferência e um encontro consigo mesma e seu estranho para provocar um efeito de alívio. Explicito: esse nunca foi meu ponto principal, apenas uma consequência secundária de escutar o sujeito. E era uma pessoa, entre muitas que se deparam naquele lugar, que precisam muito de uma escuta. É um cafuné no nosso próprio narcisismo ouvir esse “obrigada por me escutar, ajudou muito”, mas isso é (e deve ser para que não nos percamos em uma relação imaginária de saber) apenas um benefício colateral. É um erro clínico achar que, ao fazer essa função, consegue curar. Deixem isso para a paixão médica de se equivaleram a deuses na terra, enquanto enfermeiras e enfermeiros se mantém no front da guerra.
É um perigo a paixão cega de curar, por tentar compreender. O que é o oposto de um analista, que se dispõe à surpresa, a douta ignorância de não saber nada sobre quem está ouvindo e não pressupõe entender como é estar em seus pés. O máximo que podemos esperar como analista é que o analisante nos surpreenda. Essa é uma recomendação que li de Násio: para que seu paciente um dia se livre de seu sofrimento [e acrescentaria restituí-lo], não procure livrá-lo dele e permaneça aberto a surpresa. Eis o que equivale fazer o semblante de objeto a, função de analista: fazer-se uma tela em branco de qualquer ideia, sentimento, ou qualquer paixão. A inscrição quem faz é o próprio analisante, suas palavras a tinta que tantas vezes desgastam o linho. Isso é sermos o vazio em si, para mim isso é sempre um acontecimento do/no Real. Nunca é igual, é de uma inocência tapada em que muitas vezes me pego “nossa, que idiota achando que sabia para onde estava caminhando essa narrativa toda”.
Para tal, é preciso de uma disposição subjetiva daquele que se pretende analista. E ela será testada, constantemente. Vai ser cansativo? Muito. Mas eis o desejo de analista. De minha parte, não trocaria por nada; afinal, não saberia outra coisa que fazer da minha vida. E é uma disposição interna, perante si, não perante ao outro. Ao nos colocarmos nesse lugar de dar-se como não sabendo, talvez possamos ser surpreendidos por alguma verdade sobre o sujeito e entregar uma interpretação que talvez, à posteriori, surta algum efeito.
“O analista é aquele que, ao colocar o objeto a no lugar do semblante, fica na posição mais conveniente para fazer o que é correto fazer: interrogar como um saber [inconsciente] aquilo que diz respeito à verdade.”
Do que se trata então esse tal objeto? Bom, no fim das contas, trata-se de objeto nenhum, objeto nulo, imaterial e inexistente. O a que o acompanha, mesmo sendo a primeira letra do alfabeto, também remete aquele primeiro autre [outro], o pequeno, perdido no espelho quando nos constituímos eu. A invenção do objeto a, única que Lacan considera como sua em seu ensino, serve para responder a diversos problemas, mas, sobretudo, a pergunta: quem é o outro? Quem é meu semelhante? E o que isso faz de mim?
Quem é esse outro amado e odiado, agora desaparecido, de quem faço luto? Freud chama de objeto, Lacan termina com um a. Essa letra é uma maneira de nomear a dificuldade da perda, surge no lugar de uma não-resposta. O objeto a é o próprio vazio, ao mesmo tempo que uma resposta a uma pergunta que insiste sem parar: o que move o desejo? Foi a forma de Lacan de transpor o real ao representá-lo por uma letra. Essa pessoa amada, seja lá quem seja seus representantes, se assemelha por esse traço. Isso é constitutivo do sujeito, ele é o traço comum dos objetos amados e perdidos no curso da vida, eis o traço unário irrespondível senão pela letra a. Essa é a parte Imaginária do objeto a. O outro eleito é uma parte fantasmática e gozoza de coisa minha, que prolonga meu corpo e me escapa.
Voltemos um pouco à Freud. A língua alemã possui dois modos de dizer “coisa”, o primeiro deles é “Die Sachê” e o segundo é “Das Ding”. Esse aspecto importante para que possamos compreender o objeto a de Lacan. Pois “Das Ding” é a coisa, que é condição, para que qualquer outra coisa “sache” possa a vir para o sujeito como um objeto de desejo.
A coisa anterior a qualquer coisa, mas que permite que existam coisas (Die sache) é propriamente o Das Ding. – Freud parte de uma conferência Heideggeriana com o título Das Ding, para argumentar que essa Coisa, Das Ding não pode se encontrada entre as coisas (Die Sache).
Freud elevado Das Ding a um conceito, ao defini-lo como sendo a condição de uma possibilidade, por ele descrito como o eixo fundamental que se aproxima a mãe primordial (a primeira satisfação do sujeito, e a satisfação para sempre alucinada ao reencontro), entretanto é também essa mãe a primeira fonte de ameaça. Sendo desde essa mae que se estabelece no sujeito o semelhante que pode ser tanto um local de prazer como ameaça.
Sendo assim Das Ding está localizado na impossibilidade de ser uma coisa (sache) ela mesma. Das Ding para Freud (partindo de Heidgger) é a Coisa entre o céu e inferno que possibilita que o sujeito vá em busca de coisa.s (Sache) – Finalmente é importante mencionar se Das Ding é a Coisa (impossível de coisificar-se), o sujeito se vale de vorstellung (representações) para relembrar / reencontrar / tornar familiar o Estranho impossível da Coisa (Das Ding)
Não se enganem, ele possui facetas, sendo ele que integra os três registros, articulador de gozos e ponto central na teoria dos nós borromeanos. Mas está presente desde o início dos Seminários, desde o estágio do espelho Lacan usa esse pequeno a para representar o outro. É a antecipação de nossa imagem, a função do outro de nos constituir, com o poder de encantamento e satisfação de si; a jubilação infantil. O objeto a entra aqui como um estranho interno e causa do desejo. É literalmente o que está por trás do espelho, que nos move.
Esta é sua faceta simbólica, responder à pergunta: qual é a causa que anima nossos desejos? Então, para não perder tempo pela busca em vão da natureza desconhecida da causa do desejo, representamos com a teorização do objeto a; de certa forma, atende a uma necessidade de continuar a teoria. Como já mencionei ano passado, algo escapa o Simbólico, só assim foi possível criá-lo. O objeto a é aquilo de heterogêneo à rede do conjunto simbólico. Não sei o quanto sabem de teoria dos conjuntos, mas é preciso de duas coisas: ao menos-um fora do conjunto para lhe dar borda, consistência e este elemento externo chamamos de Significante-mestre. Este é homogêneo ao conjunto, lhe confere uma Lei para existir. E um excedente do sistema, de natureza real, que não se encaixa, e escapa da lógica. É aquela coisa, do Das Ding freudiano de inassimilável e excedente ao simbólico.
Isso consigo exemplificar com os pequenos lapsos no discurso do sujeito em uma análise. Às vezes mascarado bem de esquecimento, mas lhe falta literalmente a palavra. É muito engraçado. E é só um pulo, uma demonstração simples, mas que desmascara muito bem a falta no conjunto simbólico. Nem que por um momento, por um “esquecimento”, o furo não cessa de aparecer. Esse osso-duro também aparece na direção do desejo e é sempre surpreendente ver em qual direção isso vai, dependendo com o que falta.
Não se pode pensar nesse furo na estrutura como estático. Ele parado me dá medo só de pensar. O vazio pode, sim, prender, inibir, sintomatizar, angustiar. Afinal, este é o objeto da própria angústia, o Seminário X está aí para provar isso: a angústia é sua única tradução subjetiva e por isso que escutamos com tanto esmero essa parte da narrativa do sujeito. Ao mesmo tempo, é passível de ser uma força aspirante, que anima e dá consistência a cadeia. Afinal, sem nossos buracos, não gozaríamos.
O seio, as fezes, o olhar, a voz: essas partes destacáveis, mas intrinsecamente ligadas ao corpo, é disso que se trata no objeto a. Como sabem, esses são os objetos pulsionais, e o objeto a sendo não apenas o em si do gozo, destaca as partes corporais que passam de elementos orgânicos, fisiológicos, para fantasias, imagens e simulacros que envolvem o real indizível do gozo. Transborda e usa-se do nosso corpo, percorre nossos orifícios e move o inconsciente.
Existe uma condição simbólica para separar partes específicas, seja do próprio corpo ou de um objeto (como no fetiche), uma fala que separa o sujeito de sua almejada demanda. O Outro, com A maiúsculo, se intromete desde que somos apenas pedaços de carne com olhos e bocas gritantes por leite e atenção. Até assim destacamos o corpo. O bebê pensa que, após introduzido, o seio lhe pertence. Depois disso já sabemos as grandes frustrações, privações e castrações que terá que provar, aprendendo que a demanda é sempre parcial, sempre erra seu alvo de objeto e nunca se satisfaz por completo. E erra por transformar, pela fala, um objeto real, que satisfaria a demanda por completo, numa imagem alucinada, inalcançável. É essa imagem de objeto do desejo, tão turva e longínqua, sempre na linha do horizonte, que chamamos de objeto a. Não é, exatamente, o seio alucinado que o bebê tanto berra, no final das contas. Ele é a energia, essa de ficar tentando e errando o alvo, o mais-gozar indefinível. Ou ainda, o próprio furo revestido pelo semblante alucinado de um seio.
Não me lembro se foi no De uma Questão Preliminar…, mas Lacan fala na necessidade do objeto a cair frente a demanda do Outro na neurose, enquanto na psicose ele é guardado no bolso. O a é aquilo que cai no meio, na intersecção do Outro com o sujeito. Ele é sim uma perda, entre o que clamamos para a satisfação e o que conseguimos pedir através do Simbólico. Mas também pode ser teorizado como um mais-gozar. Ao invés de só uma perda, é também um excesso que se acumula. Pensá-lo só como perda é focar em seus semblantes de ser e que nunca serão. Em si, é um real opaco, um gozo local impossível de simbolizar.
O objeto a resulta da realização de uma dupla demanda. Quando o objeto se separa, o sujeito se identifica com ele e produz suas fantasias. E está no próprio matema da fantasia.
Pensemos na formulação freudiana da relação da criança com o seio:
Primeiro tempo: O seio é uma parte de mim. É a relação de parasitismo do lactente com respeito ao corpo da mãe, quando ele está agarrado ao mamilo. O seio me pertence e grito por ele quando quiser.
Segundo tempo: Perco o seio. É uma perda que corresponderia à etapa que descrevemos ao longo de todas as nossas elaborações sobre a constituição do objeto a. Ele cai entre os dois, nem do sujeito, nem do Outro. Já é outra coisa.
Terceiro tempo: Sou o seio que perdi. Processo de identificação do sujeito com o objeto, alicerce fundamental da estrutura da fantasia.
Quarto tempo: Tenho o seio, isto é, já não o sou (autonomia). Mas também não tenho-o o tempo todo. O objeto a escapa.
Assim, para a criança, o Outro, isto é, seu parceiro mais íntimo, sua mãe, fica reduzido, do ponto de vista do desejo, ao estado de seio alucinado. Ou seja, o objeto impossível do desejo incestuoso, que era a mãe, transforma-se então no seio alucinado, objeto parcial do desejo. O Outro reduz-se ao objeto a. A rigor, o sujeito também se reduz e se identifica com esse objeto do desejo. Essa dupla redução da mãe e do filho ao objeto a, redução alternada, é a operação nodal geradora da formação psíquica denominada de fantasia.
Ao cair o a, temos, como neuróticos, a moldura da fantasia estabilizada. Já que abdicamos de satisfazer a demanda do Outro e devoramos-nos todos juntos, reduzimos o desejo ao objeto a perdido. É o a que emoldura a fantasia neurótica.
É o próprio furo, o gozo enigmático e inominável. Sempre com a vontade de mais-gozar, um excesso ou um a mais de energia residual, inassimilável pelo sujeito, sentido e clamado na carne. É nosso objeto da fantasia, agalma como aquele brilho enigmático que nos chama como mariposas.
Como exemplo final, quero destacar o sadismo/masoquismo que Lacan traz no Seminário X. Não é tanto o sofrimento do outro buscado na intenção sádica, mas sua angústia. Ou seja, está intimamente ligado ao objeto a. Eis a questão, o que o agente do desejo sádico não sabe é o que procura, e o que ele procura é fazer-ser aparecer, ele mesmo, como puro objeto, fetiche macabro de desvelar o objeto a dentro da cena.
Totalmente diferente é a posição do masoquista, a segunda face da mesma moeda. Para este, é a encarnação de si como objeto é o objetivo declarado. Ele se presta a fazer o semblante de objeto a, enquanto o sadista autoriza essa identificação com o objeto de troca. Mas é-lhe impossível apreender-se pelo que ele é, uma vez que, como todos, ele é um a. Como no sádico, essa identificação só aparece numa cena, fetichizada.