O HOMEM TEM UM CORPO

Gostaria de me estender um pouco sobre as últimas formulações de Lacan, que destacam o corpo como fundador do ser. Desde seu seminário Encore podemos perceber a importância dada ao corpo. Encore, En-corps: a homofonia não passa despercebida. Nas palavras do psicanalista:

O corpo, ele deveria deslumbrá-Ios mais. De fato, é mesmo o que deslumbra a ciência clássica – como é que ele pode funcionar assim? Um corpo, o de vocês, não importa que outro aliás, corpo que se movimenta pra lá e pra cá, é preciso que ele se baste. (LACAN, O Seminário, livro XX, p. 149)

Deixemos claro de qual corpo falamos: o corpo não é o organismo. O organismo é aquilo que partilhamos com os animais, puro sistemas e conjuntos de órgãos. Estamos aqui no nível da necessidade; não é disso que se trata. O corpo é isso a que o objeto a se refere, é a fonte da pulsão desde Freud. Ele está restrito aos quatro objetos pulsionais: o seio e as fezes, o olhar e a voz. Dizemos que o homem tem um corpo, não é um corpo, pois no princípio há o objeto a, objeto da causa do desejo. 

Lacan formalizou os dois primeiros objetos acentuados por Freud – o seio e as fezes – como objetos da demanda. No estádio oral, o pedaço de bife com olhos demanda o Outro através do alimento do seio. No anal, a demanda se inverte para o Outro esperando o objeto “precioso” que o bebê pode produzir. Os outros dois objetos – a voz e o olhar – são frisados pelo próprio por serem os objetos do desejo e do gozo, respectivamente. 

Os conceitos de inconsciente e sujeito em Lacan podem ser traçados desde a refutação à consciência cartesiana. Diferentemente deste, o sujeito da psicanálise é onde o eu não pensa. O sujeito do inconsciente tem suas raízes no retorno à Freud e permeia os seminários de Lacan até o vigésimo. Neste ainda temos a noção de que “o sujeito não é jamais senão pontual e evanescente, pois ele só é sujeito por um significante, e para outro significante” (p. 195). A partir deste, o falasser ganhará destaque por sua relação com o objeto a e a fala enquanto substância do ser. O neologismo prontamente indica a relação de dependência entre o ser e a fala; só somos porque falamos. Miller (1998) clareia o conceito de falasser ao pontuar que, antes deste seminário, sujeito do desejo e sujeito do gozo se viam em uma disjunção que, com o advento do gozo no significante, é resolvida pelo termo falasser. Cito este ao comentar sobre o gozo da linguagem:
 

Essa perspectiva comporta colocar em questão o próprio termo sujeito, porque o sujeito é sempre um elemento mortificado; aliás, Lacan o definiu como falta-a-ser, e é por isso que ele faz entrar o corpo vivo na psicanálise. Ele substitui o termo sujeito por falasser, que é o contrário de falta-a-ser, é o sujeito mais o corpo, é o sujeito mais a substância gozante. (MILLER, O osso de uma análise, 1998, p. 101)

Pensemos o gozo na cadeia da linguagem como o significante na dimensão metonímica, portanto em um incessante deslizamento real, até que passe para a dimensão metafórica e se torne significante propriamente dito. O conceito de gozo remete à uma incessante repetição, com um prazer retirado do sofrimento e a parcela real de um sintoma indecifrável. 

No vigésimo terceiro seminário, O Sinthoma, temos outra torção ao conceito de sujeito que, sob influência de Joyce, se tornará a conjunção LOM, que em francês seria escrito foneticamente igual à L’Homme. Por sorte, em português também teremos o mesmo efeito com UOM – O Homem. O destaque agora se dá através do distanciamento de um corpo imaginário, ligado somente ao eu, para UOM pensando com o corpo e, por isso, falasser. Lacan rompe definitivamente com a noção aristotélica de um ser que pensa com a alma para um falasser que não tem mente. 

Já com o estádio do espelho (1956) tínhamos a concepção imaginária de um corpo sustentado pela identificação com a imagem totalitária refletida ao sujeito. Com  UOM e falasser, funda-se um conceito simbólico em que a estrutura da linguagem recorta o corpo. E, para completar a tríade lacaniana (RSI), podemos pensar a carne que resta como um real irredutível à significação. 

Ele pensa porque uma estrutura, a da linguagem – a palavra comporta isso -, porque uma estrutura recorta seu corpo, e nada tem a ver com a anatomia. A histérica o atesta. Esse cisalhamento chega à alma com o sintoma obsessivo: pensamento com que a alma se embaraça, não sabe o que fazer.

 (LACAN, 2003, p.511).

Aproveitando a introdução dos conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, é importante salientar a subversão topológica feita por Lacan, a partir do espaço de um toro, se opondo a representação esférica do sujeito humano. Ao contrário da hipótese de Descartes, Lacan recusa a noção de um mundo interno e mundo externo perfeitamente delineados, como a imagem de uma esfera nos faz acreditar. O corpo do UOM, assim como o toro, é constituído de um furo em cima – a boca – e um furo embaixo – o ânus, as “ilhotas de gozo” em que o isso se faz presente no corpo. 

Mas Lacan deixa claro, em Televisão, que UOM só se mantém através de seu escabelo, termo pego emprestado de James Joyce, quando se referia a uma cena envolvendo seu pai lhe explicando algo incompreensível. Helessecrêbelo, ele [homem] se crê belo e precisa produzir um escabelo para se sustentar com seu corpo. O escabelo é um produto da sublimação. UOM precisa inventar um significante singular para se crer um senhor belo. Cito Lacan:

O S.K.belo [escabelo] é aquilo que é condicionado no homem pelo fato de que ele vive do ser(= esvazia o ser) enquanto tem … seu corpo: só o tem, aliás, a partir disso. Daí minha expressão falasser [parlêtre] que virá substituir o ICS de Freud (inconsciente, é assim que se lê): saia daí então, que eu quero ficar aí. Para dizer que o inconsciente, em Freud, quando ele o descobre (o que se descobre é de uma vez só, mas depois da invenção é preciso fazer o inventário), o inconsciente é um saber enquanto falado, como constitutivo do UOM. A fala, é claro, define-se aí por ser o único lugar em que o ser tem um sentido. E o sentido do ser é presidir o ter, o que justifica o balbucio epistêmico. (LACAN, 1975, p. 561)

Não por nada cito a cena de Joyce com seu pai. Da primeira para a segunda clínica temos uma falência da função paterna que destitui o Nome-do-Pai de seu lugar estruturante para os nomes do pai como mais um sintoma. Claro que até mesmo o sintoma é reestruturado na clínica borromeana. O modelo RSI necessita de consistência. Com os três registros enodados borromeanamente, se um deles se solta, os outros dois sofrem o mesmo destino. Para uma amarração dos três, Lacan supõe as noções de sint(h)oma e de nomes do pai como solução. No caso de Joyce, um efeito singular se fez valer pela suplência da função paterna faltante e suas reverberações são vistas nos três registros.

No simbólico, Joyce contou com uma falta do significante Nome-do-Pai. Não devemos mais pensar esta ausência como necessariamente produtora de um sintoma como termo negativo, foracluído. Neste caso, criou-se uma “vontade de se fazer um nome”, um significante-mestre que daria conta da falta da metáfora paterna. Nas palavras de Lacan: 

Seu desejo de ser um artista que fosse assunto de todo mundo, do máximo de gente possível, em todo caso, não é exatamente a compensação do fato de que, digamos, seu pai jamais foi um pai para ele? Que não apenas nada lhe ensinou, como foi negligente em quase tudo, exceto em confiá-lo aos bons padres jesuítas, à Igreja diplomática? (LACAN, O livro XXIII, p. 86)

Já no plano do imaginário, a função do corpo assume um duplo estatuto. Diferentemente do usual, no qual a identificação imaginária com o próprio reflexo se cristaliza no que chamamos de eu, Joyce se vê sem seu corpo como suporte do imaginário. Ao invés de um eu como uma ideia de si como corpo, o eu de Joyce é a própria literatura onde ele se inscreve. 

O eu particular de Joyce 

(LACAN, 1976, p. 148)

Por fim, a suplência criada por Joyce para a falta da metáfora paterna reverbera no real através da face de gozo do sintoma. Aqui adentramos o que Miller (2008) chamou de “uma orientação da psicanálise para o real”, na qual o sintoma é considerado por sua vertente real e indecifrável; um modo de gozo. 

É errôneo limitar Joyce ao seu escabelo. Miller (2014) já disse que “o escabelo é, de um modo geral, aquilo sobre o qual o falasser se ergue, sobe para se fazer belo”. Em contraponto com o sinthoma, o escabelo se trata de uma negação do sujeito dividido do inconsciente, crendo assim o falasser como senhor do seu ser. Enquanto o sinthoma visa a inclusão e suporte do estranho de cada um, do das Unheimliche freudiano como parte do ser, o escabelo “está do lado do gozo da fala que inclui o sentido” (Miller, 2014). Este se contenta com uma resposta prèt-à-porter, imagética mas necessária para que o UOM reconheça seu corpo e consiga dele se apropriar para produzir. 

Já o sinthoma é da mais alta costura. Não tem como ser intercambiado entre sujeitos, não há oferta que o outro possa fazer que se assemelhe à um sinthoma produzido sob medida pelo sujeito, para o sujeito. Ele é intransferível, está no nível do estilo, assim como diferenciamos um Van Gogh de um Renoir. Vai além da linguagem, diretamente para o gozo do corpo, é a inscrição irredutível do real. 

O surpreendente de Joyce é sua habilidade em transformar seu escabelo em sinthoma, e vice-versa. Ele ancorou seu eu precisamente onde seu sintoma se faz opaco a qualquer outro, menos a ele. Miller específica, dizendo “em termos exatos, Joyce fez do próprio sintoma como fora do sentido, ininteligível, o escabelo de sua arte”.

Agora que vimos o particular de Joyce lidar com sua singularidade, gostaria de introduzir uma generalização desenvolvida extensamente por Jairo Gerbase em seu livro A Hipótese Lacaniana e resumida em um capítulo do seu mais recente livro, O homem tem um corpo

“O CORPO NO RSI”

O que me interessa destacar da obra de Gerbase é sua análise de como o sujeito maneja o corpo em função das estruturas clínicas. A veracidade de diagnósticos pautados na estrutura do significante e do discurso será posta em questão no momento em que a universalidade do Outro deixa de ser aceita e o Nome-do-Pai entra em declínio. Mas ainda considero valiosa a perspectiva do psicanalista de tratar o assunto pelo sistema RSI. 

Seguindo Freud, comecemos pela histeria. Esta estrutura é comumente distinguida pelo seu modo de lidar com o sintoma através da conversão, que implica uma tradução de uma ideia que o sujeito faz de uma doença física. A impotência médica perante a histérica coloca em evidência como não se trata de nenhum transtorno físico conhecido. Gerbase aponta para a lógica de uma anatomia imaginária, na qual os sintomas são “efeitos imaginários (I) do significante (S1) no corpo, efeitos I de S1, exatamente porque não há evidência de sintoma físico” (p.62). Mesmo sentindo a sensação física, não há nada que explique, biologicamente, o que está vivenciando no corpo. 

A característica marcante da histeria é de seu sintoma somático poder ser interpretado através da dimensão imaginária. Os efeitos imaginários do significante-mestre, como a conversão e a dissociação, são resultantes do recalque que este sofre por ser insuportável à consciência. A histérica nada quer saber de seu sintoma. Ela gozará de suas reminiscências até o ponto em que se tornará insustentável sua parcela de prazer-desprazer. 

Avançando para o obsessivo, logicamente teremos um giro que o torna característico pelo efeito simbólico (S) do significante-mestre (S1) no corpo, efeito S de S1. Enquanto na histeria tínhamos o corpo como lugar de primazia para a expressão do real do sintoma, no obsessivo ele se expressa através dos pensamentos. Mas Gerbase nos alerta que UOM é corpo, excluindo sua mente como algo incorpóreo e destacado. Assim como a histérica, o obsessivo sofre de sintomas somáticos, mas esses gozam pela repetição. 

A diferença primordial se encontra nos efeitos sintomáticos S de S1, decorrentes da holofrase. Ou seja, a estrutura obsessiva pressupõe “uma forma de isolamento, de impedir que um significante se articule a outro significante” (p.65). Gerbase aponta para a transdução do congelamento entre significantes (pensamento) para sintomas somáticos (corpo). Seus efeitos no corpo são palpáveis pela medicina, o obsessivo está constantemente produzindo modos de ir parar em salas de espera, mas sem ter uma base orgânica. O corpo da histérica fala por ela, enquanto o obsessivo fala pelo seu corpo. 

Por fim – mas não por último -, temos que analisar os efeitos reais (R) do significante (S1) no corpo. Estes são atribuídos aos sintomas esquizofrênicos, que são consequência da foraclusão, do significante que não se inscreveu voltando no real. Os efeitos podem ser observados na cinestesia do corpo, “como fala do orgão”, ou seja, uma hipocondria sem pé nem cabeça. Vemos-no acontecer quando o analisando relata um corpo “despedaçado” ou um órgão fora do lugar. 

Não posso deixar de notar que ainda falta articularmos a paranóia, a melancolia/mania e a perversão com seus respectivos efeitos no corpo. Isso é um ponto em que Gerbase nos deixou na falta para produzirmos…

REFERÊNCIAS

GERBASE, J. O homem tem um corpo. Associação Científica Campo Psicanalítico (1 janeiro 2020).

______________A hipótese lacaniana. Editora Jairo Gerbase (17 julho de 2019). 

LACAN, J. (1972 – 73) O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Zahar; 1ª edição (1 outubro de 1985)

_________ (1975 -76) O Seminário, livro 23: O sinthoma. Zahar; 1ª edição (21 maio de 2007)

_________ (1966 – 1973) Outros Escritos. Zahar; 1ª edição (23 outubro de 2003)

MILLER, J-A. O osso de uma análise. In Agente – Revista de Psicanálise. Bahia: Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise, 1998.

__________. El partenaire-síntoma. Buenos Aires: Paidós, 2008.

O inconsciente e o corpo falante. Apresentação do tema do Xº Congresso da AMP, por Jacques-Alain Miller (30/09/2014) http://uqbarwapol.com/o-inconsciente-e-o-corpo-falante/