● Introdução + A Psicanálise e a Psicologia da Consciência
Pode-se concentrar a descoberta freudiana em uma palavra: o inconsciente, de acordo com Laplanche e Pontalis. Mas nem todos os teóricos além de Freud concordam com o conceito de #inconsciente. Segundo Lacan (1970a), “o inconsciente é estruturado como linguagem”, o que para muitos soa como uma linguagem estrangeira, assim como o próprio francês em suas ambiguidades. O “lacanês” é propositalmente literário e deliberadamente confuso, com suas “cadeia de significantes”, “instância da letra” e “processos metafóricos e metonímicos”. E ele ainda afirma que apenas está “relendo Freud”! Como, então, a maioria dos pós-freudianos se perdeu tanto na leitura desses textos?
Sigmund Freud certamente não foi o primeiro a utilizar o termo “inconsciente”, filósofos tão #antigos como Aristóteles já mencionava essa área desconhecida e envolvida de mistérios. O que destaca #Freud foi sua capacidade de descrever e explicar os mecanismo do funcionamento do inconsciente em uma linguagem científica. Antes dele, o inconsciente era usado como um adjetivo, seria apenas uma falha da #consciência. Foi quando suas histéricas criaram um furo no saber médico que Freud se viu confrontado com uma descoberta copernicana de que o Eu “não é senhor da própria casa”.
Ninguém lê o que está escrito. Lacan parte de Freud e produz dele um discurso; partindo do texto manifesto, assim como Freud e os sonhos, sintomas e atos falhos, Lacan procura um outro texto escrito pelo inconsciente, latente nas palavras do pai da #psicanálise. Os conceitos não são tão simplistas como fazem acreditar os pós-freudianos, eles precisam ser explorados e articulados entre si.
Uma forma de diferenciar a psicanálise é compará-la com o que ela não é, como por exemplo: não é a #subjetividade identificada com a consciência, dominada pela razão. Antes de Freud, o termo “inconsciente” era uma forma adjetiva para designar o negativo da consciência, mas nunca para designar um sistema psíquico distinto dos demais e dotado de atividade própria. Ele não designava nada de importante ou de decisivo para a compreensão da subjetividade.
#Lacan declara que “o inconsciente de Freud não é de modo algum o inconsciente romântico da criação imaginante. Não é o lugar das divindades da noite”, ou seja, ele não é somente um lugar onde assuntos tenebrosos para a consciência se escondem e nem algo ilógico ou caótico. Ele não é aquilo que se encontra “abaixo” da consciência para ser explorado pelos corajosos. Freud fala-nos de um novo sistema psíquico, o do inconsciente se contrapondo com o pré-consciente e o consciente, que também é em parte #inconsciente (adjetivo), mas não é o inconsciente.
Não há nada de arbitrário nos acontecimentos psíquicos, todos eles são determinados, diferentemente do que alguns possam pensar sobre um inconsciente caótico e sem lei. Mesmo não sendo a mesma sintaxe do sistema pré-consciente e consciente, existem regras que determinam o inconsciente; nada é arbitrário. Mesmo na associação-livre, regra fundamental da psicanálise, o livre só significa desamarrar o discurso da consciência e suas defesas e não soltá-lo no caos. O #inconsciente possui uma ordem, uma sintaxe; ele é estruturado e, segundo nos diz #Lacan, estruturado por uma linguagem.
● Os fenômenos lacunares
O caminho do inconsciente está nos fenômenos lacunares, nas lacunas das manifestações conscientes, como o sonho, o lapso, o ato falho, o #chiste e os sintomas. Ele produz uma descontinuidade no discurso #consciente e também um sentimento de ultrapassagem como se um sujeito desconhecido tivesse atropelado sua fala, produzindo trocas de nomes e esquecimentos. É essa perplexidade que o #sujeito do enunciado (significado) sofre pelo sujeito da enunciação (significante) que mostra o caminho para o inconsciente.
Os fenômenos lacunares são, portanto, indicadores de uma outra ordem (inconsciente), irredutível à ordem consciente e que se insinua nas lacunas e nos silêncios desta última. Eles são os indicadores da realidade do inconsciente. O inconsciente não é o mais profundo, nem o mais instintivo, nem o mais tumultuado, nem o menos lógico, mas uma outra estrutura, diferente da consciência, mas igualmente inteligível.
● O inconsciente e o #simbólico
É preciso tomar cuidado com os fantasmas do passado quando se fala de inconsciente e talvez o maior deles seja o da substância.
O homem ocidental tem uma particular dificuldade para pensar qualquer coisa que não seja substância ou propriedade de substância, querendo sempre materializar a teoria. Mas sabemos perfeitamente que os “lugares psíquicos” possuem um caráter metafórico, que não correspondem a lugares anatômicos e não podem ser comparados a cômodos abertos e fechados quando se trata de seu conteúdo. O inconsciente freudiano não é uma substância espiritual, nem é um lugar ou uma coisa. Dizer que uma representação é inconsciente só significa que ela está submetida a uma lei diferente daquela que caracteriza a consciência. O inconsciente é uma forma e não um lugar ou uma coisa; é uma lei de articulação.
O que define o inconsciente não é seu conteúdo e sim a maneira que opera, impondo uma determinada forma. Não se pode cair na tentação dos seguidores de Freud e biologizar o inconsciente, ele é estritamente relacionado com o Simbólico; só há o inconsciente se houver simbólico, o recalque é a chave necessária para a produção do inconsciente e isso só ocorre por exigência do simbólico.
Lévi-Strauss, um antropólogo francês conhecido de Lacan, afirma em 1967 que o conceito do inconsciente em antropologia é uma função: uma função simbólica, especificamente humana e que em todos os homens exercem as mesmas leis; que se reduz, de fato, a essas leis. A cultura é, portanto, um conjunto de sistemas simbólicos; só há o social porque há o simbólico. O acesso ao simbólico é a condição necessária para a constituição do inconsciente e, evidentemente, também do consciente. É a aquisição da linguagem que permite o acesso ao simbólico e a consequente clivagem da subjetividade. No entanto, a linguagem é instrumento do consciente e não do inconsciente; o último é apenas constituído como uma linguagem.
● A estrutura do inconsciente
Sobre a estrutura do inconsciente, Freud afirma que encontramos nesse são
representações , representações psíquicas da pulsão, isto é, inscrições da pulsão nos sistemas psíquicos. Sendo o inconsciente constituído apenas por representações de coisas, não de palavras e nem de afetos.
Com medo de confundirem o inconsciente adjetivo, completamente inteligível as psicologias, com o inconsciente sistemático, Freud usou a sigla Ics para o último. Uma representação pertencente ao Ics pode escapar à censura e ingressar no sistema Pcs/Cs, mas não significando que ela se torne consciente e sim que tem a capacidade de se tornar. Neste estado ela é adjetivamente inconsciente, mas não no sentido sistemático. Quando uma representação pertencente ao sistema inconsciente se torna consciente, o que acontece? Não há uma dupla inscrição da representação, como diria a hipótese topográfica, mas uma mudança funcional que supõe a eliminação do estado anterior (hipótese funcional).
O recalque constituí um processo fronteiriço dos sistemas Ics e Pcs/Cs em que a catexia, ou o investimento de desejo, é removida da ideia do pré-consciente; essa catexia permanece no Ics e permanece capaz de ação. Ela, portanto, permanence desinvestida, ou recebe investimento do inconsciente, ou retém o investimento do inconsciente. Se faz necessário então um outro processo que mantenha a repressão e assegure o estabelecimento e continuidade da repressão primeva (puramente no campo Ics): a anticatexia ou contra-investimento
O inconsciente freudiano pode então ser definido por três pontos de vista. Por um lado, o sistemático apresenta um sistema particular do inconsciente, constituído por leis próprias e um tipo de pensamento onírico atemporal. Por outro, o dinâmico diz das relações entre as instâncias psíquicas através de uma repressão/recalque e seu retorno, sempre a partir de uma formação de compromisso, uma negociação entre as duas. E por último o tópico que o separa em três modalidades puramente didáticas: inconsciente, pré-consciente e consciente.
● As características do sistema Ics
Como característica, o inconsciente tem como seu núcleo impulsos carregados de desejo. Nesse sistema pode coexistir, lado-a-lado, duas representações contraditórias sem que isso implique a eliminação de uma delas. A não contradição não funciona no Ics, o que pode acontecer é um #investimento maior em uma das #representações divergentes, mas não a exclusão de uma delas. Não há lugar para a negação, isso é tarefa do Pcs.
Outra #característica é a do processo primário como modo de funcionamento do Ics, assim como os mecanismos básicos de deslocamento e condensação. A energia psíquica tende a escoar livremente e procura uma saída imediata, calcada no princípio de prazer. Já a consciência/pré-consciência é baseada no processo secundário onde a descarga é retardada de maneira a possibilitar um escoamento controlado e satisfatório para o princípio de realidade. O #inconsciente também é atemporal, não estão organizadas cronologicamente e nem sofrem desgastes do tempo.
● “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”
O que Lacan quer dizer com “O inconsciente é estruturado como uma linguagem”?
Sabemos que o simbólico tem um papel constituinte do sujeito humano, ele é o mediador da realidade e ao mesmo tempo o que constitui o sujeito como sujeito humano, mas disso nada temos de original. A novidade é que Lacan relê Freud de uma maneira a assinalar as os vários níveis de estruturação do simbólico, assim como a formação do inconsciente pela linguagem.
Para compreendermos a linguagem de Lacan, será preciso um retorno a #Linguística estrutural de #Saussure. É possível afirmar que o signo é uma unidade composta de duas partes, tal como uma moeda é composta de cara e coroa; é a união de um conceito e uma imagem acústica. O que ele une é um significante e um significado. Mas Saussure afirma dois princípios ao signo linguístico: a arbitrariedade e a linearidade. O primeiro seria a inexistência necessária entre um #significado e um significante, não mantém nenhum laço com a realidade. O segundo diz respeito a cadeia de significantes, se comparando um significante ao outro de acordo com seu som.
Mas Lacan vai subverter a ordem de Saussure sobre o valor de cada um dos dois. De acordo com ele, o significante deve ficar em cima do significado, separado por uma barra que indica a autonomia do significante.
pelo significante, unidade essa que era marcada pelo caráter indissociável de suas partes componentes, para Lacan a barra indica duas ordens distintas, a do significante e a do significado, interpondo-se entre ambas uma barreira resistente à significação (Lacan, 1978, p. 228). Fica, dessa maneira, quebrada a unidade do signo defendida por Saussure. A cadeia dos significantes é, ela própria, a produtora de significados.
Só se dá a significação entre dois significantes, é preciso de uma cadeia. É a oposição entre os significantes que vai produzir a diferenciação entre os significados. O que Lacan nos diz, numa crítica a toda filosofia que procura o significado, é que o significante não tem por função representar o significado, mas que ele precede e determina o significado (ibid.). Faz-se necessário, portanto, determinar os princípios segundo os quais os significantes se articulam.
● Processos metafórico e metonímico
Se o inconsciente é constituído como uma linguagem, o sonho não seria diferente. Ele é um enigma em imagens e as imagens do sonho só devem ser consideradas pelo seu valor significante, ou seja, em uma cadeia. É a rede do significante, pelas suas relações de oposição, que vai constituir a significação do sonho.
A metáfora pode ser equivalente da condensação, na qual existe um significante sobre outro, tendo função de significado para aquele significante do sujeito. Um significante é o representante de vários outros em uma tentativa de condensar os significados, por relação de similaridade. Já a metonímia é o deslocamento, a associação de significantes por contiguidade; troca-se um significante por outro que tem, com o primeiro, uma relação de contiguidade. Devemos entender por isso não apenas que a metáfora e a metonímia regem o funcionamento do inconsciente, mas que eles são formadores do inconsciente no recalcamento #original. Eles são responsáveis por uma das características mais importantes da linguagem e do simbólico: o duplo sentido, isto é, o fato de ela dizer outra coisa diferente daquilo que diz à letra. “O desejo é uma metonímia” e “o #sintoma é uma #metáfora”.
Com isso, Lacan postula uma ruptura entre o significante e o significado, fazendo com que, pela interposição de um novo significante, o significante original caia na categoria de significado, permanecendo como significante latente. Quanto mais extensa for a cadeia significante que surja nesse intervalo, maior será a distorção produzida.
● A emergência do inconsciente
Para que se tenha o inconsciente, é preciso do recalque originário. Essa primeira fase do recalcamento consiste na recusa de um representante da pulsão pelo consciente e que a partir daí se estabelece uma fixação, permanecendo o representante em questão inconsciente e ligado à pulsão. Só se pode ingressar no universo do simbólico pela constituição do inconsciente.
É uma primeira divisão do sujeito, a que separa o imaginário do inconsciente. Anterior ao simbólico, o imaginário constitui o primeiro corte com o exercício pleno da #pulsão. É pela perda originária, a separação do recém-nascido de sua mãe, que o #sujeito consegue consolidar um Eu bem formado no estádio do espelho e passar a #recalcar. Esse rompimento não é a perda da mãe mas sim um pedaço de si mesmo. Daí por diante, a #libido só poderá expandir-se através das zonas erógenas, e a pulsão ilimitada do processo primário será transformada em “pulsão parcial”. Ligada a um objeto imaginário, a libido será marcada pela perda, pela insatisfação, pela incompletude. A falta ou “ hiância” nos remete a essa incompletude fundamental do ser humano. Ela é anterior à #pulsão, anterior ao desejo. Essa falta será, daí por diante, representada no #imaginário pelo que Lacan chama de “ letra” .
A letra é o significante tomado em sua materialidade. Não é falta mas a representação desta. Ela é uma marca que fixa uma falta, um vazio; ela é um significante abstrato, inscrito no inconsciente e referido a uma experiência originária de prazer ou desprazer. São precisamente essas letras ou esses significantes elementares que vão constituir propriamente a ordem do inconsciente a partir do recalcamento primário.