Não se escapa da repetição. É um eterno ambiente com semblante de mundo social que, na realidade, é mais como um maquinário que suspende a vida e disfarça o custo humano para sustentar sua efetividade (CRARY, 2013). Em 24/7: Capitalismo tardio e os fins do sono, Jonathan Crary discute como um mundo iluminado eternamente pelo mercado e seus dispositivos é “a miragem capitalista final da pós-história” (p. 19).
Criticando uma pós-modernidade que replica a ilusão de um mundo atemporal, como vivida em cassinos de Las Vegas, Crary anuncia as consequências de um tempo sem tempo. Ficar acordado 24/7 ainda é impossível, mas a constância de estímulos audiovisuais promovidos pelo mercado é o suficiente para criar uma atmosfera alienante e paranoica. “O 24/7 é moldado em torno de objetivos individuais de competitividade, progresso, ganância, segurança pessoal e conforto às custas dos outros.” (p. 46).
A insônia artificial criada para aumentar a produtividade do indivíduo torna-o eternamente vigilante. Consequentemente, as desgraças e horrores que permeiam ao seu redor são impossíveis de ignorar. Mas também começam a se tornar banalidades após certo tempo bombardeados por atrocidades. Diante todo o caos, nada mais justo que naturalizá-lo em um ruído branco e continuar a viver como se nada importasse além do próprio eu. Afinal, como uma pessoa que lê a tragédia conseguiria fazer algo além de compartilhá-la e postar sua opinião sobre? Porque é isso que importa nessa distopia 24/7, “a ilusão de escolha e autonomia é uma das bases desse sistema global de autorregulação”(p. 48). Nada mais longe da verdade, considerando a infinitude de aparatos modelando, contaminando e controlando a vida dos indivíduos.
Dormindo, seres humanos não são rentáveis; não trabalham e não compram. Mesmo o filme Matrix (1999) tendo previsto uma maneira de tornar isso possível, escravizando a humanidade em um eterno estado de coma, o neoliberalismo não esperou pelos avanços tecnológicos chegarem a esse nível. Ao invés disso, aproveitou-se daqueles que já estavam à sua disposição para criar todo um espetáculo imperdível de oportunidades.
As próteses vitais precisam sempre estar a meio metro de distância. Algoritmos mutáveis calculam o melhor anúncio, a melhor notificação, no melhor momento para que se engaje no objeto e venda a atenção do usuário. Não se tem o luxo de descansar, de dormir. O olhar, a percepção do usuário, se tornou a mercadoria. Criou-se a ilusão de ferramentas gratuitas, mas que estão vendendo a atenção de seus usuários.
Não só limitando a quantidade de sono noturno, uma das funcionalidades desses gadgets é diminuir os momentos de devaneio inerente do ser humano enquanto está acordado.
Fantasiar e relativizar sua realidade não é lucrativo. É mais vantajoso para o mercado que seus usuários concentrem-se em anúncios dispersados em redes sociais. Se ter tempo livre já é um luxo, o capital não desperdiça nenhum segundo desse privilégio que ele mesmo concede. E para certificar-se que o ciclo de euforia não cesse, propagandas com pessoas de fácil identificação precisam estar em circulação, mostrando a cenoura na vara da felicidade. Para que serve uma identidade se não é facilmente descartável? É simplesmente alcançar o nível de insatisfação para que algo ceda no narcisismo.
Pensando na fragilidade do imaginário, o escritor Mark Fisher (2009) repercurte a dúvida de até quando uma cultura persiste sem algo novo, qual o limite do sujeito em manter uma imagem (p. 10). O que acontece quando a juventude já não aguenta criar novidades? Construíndo sua teoria sobre um Realismo Capitalista, Fisher aponta para a crueza do capitalismo, sendo o que resta quando os aportes no nível Simbólico e cultural colapsam. “All that is left is the consumer-spectator, trudging through the ruins and the relics.” (p. 12). Trazendo citações como Children of Men, um livro distópico de P. D. James, ele alerta para o funcionamento bem-sucedido do capitalismo em consumir toda uma história e transformá-la em peças de museu fora de uso; o sistema de equivalência do capital, deste significante fálico, transforma todo e qualquer objeto em um valor monetário. Movimentos culturais podem ser comprados, nem que sejam para ser apenas preservados. Eles também geram capital, se bem utilizados.
Uma consequência que Fisher extrai dos que crescem nesse deserto simbólico é um sujeito que Nietzsche contrapõe ao seu Übermensch, um Último Homem (Letzter Mensch), aquele desviado de um ideal a ser a alcançado e produzido para um idealismo de consumo. É aquele contentado em satisfazer demandas, continuamente circulando o gozo de ter e não ser, aproveitando os mais modernos gadgets. É estagnado em seu conforto e miserável por causa disso; um gozo que tenta completar. Com toda a informação na palma de nossas mãos, vivemos em um estado deflacionário pelo excesso, seja de dados ou notícias, notificações ou propagandas. Citando o suicídio do artista Kurt Cobain, Fisher atribui-lhe o alerta para as gerações que virão no “pós-história”:
In his dreadful lassitude and objectless rage, Cobain seemed to give wearied voice to the despondency of the generation that had come after history, whose every move was anticipated, tracked, bought and sold before it had even happened. Cobain knew that he was just another piece of spectacle, that nothing runs better on MTV than a protest against MTV; knew that his every move was a cliché scripted in advance, knew that even realizing it is a cliché (FISHER, 2009, p. 16).
Ao invés de criar um ideal, de valores compartilhados e uma cultura, o capitalismo propõe-se ao papel de garantir que não seja necessária uma subjetividade. Diferentemente de outras ideologias como o fascismo, o capitalismo não precisa de uma constância em suas propagandas. Criou-se assim uma fantasia que estrutura nossa realidade social em sua própria existência, já que não propõe uma alternativa. Somos cúmplices em manter uma ideologia parasitária, enquanto acreditamos em um Outro culpado pelo nosso sofrimento. Pois, mesmo sendo uma estrutura impessoal e hiper-abstrata (p. 22), o capitalismo também precisa de nossa co-operação com o corpo e o trabalho.
Por ser inevitável uma proliferação de inibições, sintomas e angústias, o realismo capitalista defende que a “praga da saúde mental” é um fator natural, não um efeito político-econômico. O que nos mostra é o desfuncionamento inerente do próprio capitalismo, tendo um alto preço no ser humano para mantê-lo ativo. Neste mesmo livro, Fisher apresenta uma possível estratégia contra essa metáfora delirante coletiva: o invocamento do Real subjacente na realidade apresentada pelo capitalismo (p.26).
Crescer nesse período a-histórico, conectados a uma matrix de vídeos, fotos e alertas, incentiva a agitação, a passividade do consumo e a inabilidade de concentração ou foco. O tédio representa o momento em que a sensação-estímulo das telas deixa de fluir a doce gratificação sob demanda, pequenos momentos insuportáveis para manter o círculo vicioso funcionando. Proporcionalmente, a químico-biologização da saúde mental absolve qualquer responsabilidade do maquinário capitalista. Os benefícios para o reforço da ideologia individualista é no nível neurológico, ao mesmo tempo que crescem os lucros dos laboratórios farmacológicos.
A copulação perversa entre capitalismo e ciência se mostra útil novamente. Existir sempre um saber sobre o sujeito, seja o mau funcionamento de sua serotonina ou algum produto novo que lhe falta, não permite a expressão de sua subjetividade; muito menos produz um laço social, já que é um problema tecnicamente específico. Vendemos nossa atenção por um prejuízo alto, com efeitos colaterais à longa prazo impossíveis de se calcular.
Um dos mais renomados filósofos da pós-modernidade, Byung-Chul Han, se aproveitou dessa imediaticidade do neoliberalismo para tornar sua forma de crítica ao sistema acessível, através de livros finos e com uma linguagem clara. Em seu ensaio intitulado Sociedade da transparência (2012), ele discorre sobre certos aspectos que foram hiperinsuflados durante a disseminação exponencial das redes sociais.
Pensando nas consequências de uma “transparência” fetichista e totalizante, Han argumenta de que sem o lado ruim, o lado negativo da moeda, a sociedade e a cultura se tornam unilaterais, rasas e planas. Para diminuir a resistência frente ao sistema capitalista atual, promessas de um presente melhor disponível são massificadas e um futuro otimizado é encorajado. Não pode haver espaço, não pode haver falta; a imagem torna-se pornográfica ao ser colocada em contato imediato com o olho. O dinheiro, o capital, deve ser o significante fálico que iguala e organiza o resto da cadeia, tornando possível uma “liberdade” individual pelo livre-mercado. Vivemos em um “abismo infernal do igual” (p. 12).
Ao ler, é impossível não relacionar a negatividade com a falta, aquela que constitui a possibilidade de um desejo, influenciando o sujeito do inconsciente com a alteridade. Mas, conforme a lógica neoliberal, o outro é um empecilho na comunicação rasa do igual, narcisisticamente identificado; todos precisam seguir a função fálica ideologizada, o dinheiro. A uniformalização é “transparente”, um nome mais rentável que totalitário. A linguagem acompanha em sua formalidade, tornando-se mecânica e sem espaço para duplos-sentidos. Mesmo nem sequer sendo transparente consigo mesmo, assumindo seu inconsciente como infamiliar [Unheimliche], o sujeito pós-moderno deve se manter na onda de informações sem direções, domesticando até o amor para se encaixar na lógica do consumo e conformidade.
A transparência só é sustentável em uma teatrocracia. A política deve se conformar também a uma performatividade que se deseja verdadeira, tudo é pura encenação. Elegendo empresários e perversos ao maior cargo estatal possível, através de uma democracia manipulada pela massificação da informação e a falta de verdade, incentivamos um “anti-partido” incolor e transparente. Em governos como os de Trump e Bolsonaro, criamos a lucratividade com dois polos extremos de verdade e liberdade. Ainda que incompetentes do início ao fim para uma igualdade e melhora de vida para seus cidadãos, eles foram acompanhados por uma abundância de filosofias de vida que pregavam uma ideologia de positividade e um incentivo para pensar sempre no copo meio-cheio. Os chamados influencers não cansam de propagar uma ficção de felicidade enquanto são pagos para fazerem de si propagandas.
Com a dependência dos reforços positivos entregues pelas redes sociais, o valor cultural de uma arte é trocado pelo seu valor de exposição; só há valia se é visto, “if you didn’t post about it, did it really happen?“. Mais do que isso, compartilhar essa fantasia de estar excited (exitado sendo uma coerente aproximação) o tempo inteiro se tornou status-quo para que o sujeito não se veja com o real e afaste a angústia de se deparar com a falta.
Facilitando o acesso a uma câmera digital manual no bolso maciçamente, o valor cultural de se passar do filme para o “negativo”. Disponível a qualquer instante, a fotografia é banalizada junto com a imagem, ela se torna “sem nascimento e sem morte, sem destino ou evento” (BAUMAN, 2012). O que se escuta na clínica é uma indiferenciação entre produzir e se expor como corpo-objeto a ser gozado. Não é uma demanda, que passaria pelo Outro para se ter o prazer no sintoma metafórico. O gozo se explicita no Real, no corpo. Não precisa passar por um Simbólico, é trabalhoso demais e não combina com uma cultura maximizadora do tempo; sem passar pelo momento de compreender, o ver precisa estar atrelado imediatamente ao de concluir, não cabe o duplo sentido da interpretação (LACAN).
O corpo deixa de ser habitado para ser usufruído, exposto para circular como objeto fálico. O visível se torna absoluto e exclui o Real; a beleza e o corpo fitness são o que contam, não importa o resto angustiante. Para que complexificar o ser humano e suas vicissitudes em uma cultura imediatista? Se comunicar precisa ser rápido, concreto. Consequentemente, se encoraja o vazio de sentido, não há espaço para profundidade.
Como, então, esse deserto de subjetividade repercute na sociedade? O laço social, sustentado por esses sujeitos desolados, logicamente sofrerá uma mutação. Uma perspectiva possível para pensar essa pergunta é através do conceito de discurso para Lacan.