Quando usamos o prefixo “neo”, geralmente nos referimos a algo que indica o novo, com etimologia do grego néos. Mas, no caso do neoliberalismo, prefiro a definição de “neo” como um substantivo masculino que se refere a forma abreviada de neoplasia, um processo patológico que dá origem a um neoplasma, um tumor que pode ser benigno ou maligno. Assim como um câncer, o neoliberalismo germinou nos anos 70, de uma economia liberal em um momento de desregulamentação do sistema monetário internacional. Com o dólar desvalorizado e o ritmo de crescimento dos países industrializados brecados, a escola de econômicos como Friedman e Becker, com promessas de liberdade e fim de crises econômicas, ganha espaço para se alastrar no solo (in)fértil do pós-guerra.
Não é como se tivesse emergido do submundo inusitadamente. O neoliberalismo teve seu início propriamente dito com economistas como Milton Friedman, um americano que criou e gerenciou a Escola responsável por um experimento social institucional no Chile. Através de um ato transgressor de golpe de Estado, a perspectiva neoliberal redesenhou o curso de um país em poucas décadas.
A princípio, o plano é simples: precisamos de menos Estado e mais Mercado. As taxas implementadas estavam atrapalhando o crescimento econômico e o modelo industrial precisava ser repensado. Supervisionar e controlar se o trabalho está sendo executado propriamente é custoso, a singularização das funções é desgastante e o modelo taylorista precisava de um toque de humanidade. Portanto, uma psicologização das relações de trabalho se fez necessário para que o próprio trabalhador se visse como uma engrenagem necessária e com um valor para a máquina capitalista. Nas palavras de Margaret Thatcher (1981), “Economias são o método: o objeto é mudar a alma”. Para que tal mudança se tornasse possível, foram precisas intensas sessões de intervenção e reeducação no nível celular dos indivíduos, até que estes começassem a se entender como “empreendedores de si”. A ideologia neoliberal precisava ser internalizada como a única racionalidade possível.
O filósofo responsável pela análise da liquidez da modernidade, Zygmunt Bauman, lançou em 2010 um ensaio intitulado Capitalismo parasitário. Nele, ele escreve sobre a iminente distorção capitalista sob a realidade, impossibilitando pensar em outra alternativa melhor do que a com um slogan sedutor de “Não adie a realização do seu desejo”. Bauman ressalta a condensação do imediatismo em um cartão de crédito, que permite desfrutar do objeto cobiçado agora e pagar o preço por ele depois. Incapacitados de esperar, não pensar no depois e nas consequências só acumula problemas no fim do mês. É preferível o adiamento da punição do que se ver privado.
Comparando a substituição do gozo pela dívida com as toxicomanias, Bauman enfatiza como viver à crédito cria dependência (p. 24). Como a drogadição, o crédito cria dívidas impagáveis durante a orgia consumista. Essa é a única função do Estado: garantir a disponibilidade contínua de crédito e persuadir consumidores a obtê-lo (p. 30). Um Estado capitalista significa construir e conduzir políticas públicas à favor dos interesses do mercado, permitindo a segurança e a longevidade do seu domínio.
O rumo da metástase neoliberal foi fazer do Mercado o principal regulador do Estado, se espalhando o suficiente pelo organismo para se fazer a forma na qual a instituição estatal deverá se inscrever. O mercado deve ser o objetivo, o princípio e a forma. Partindo do que já estava posto, o neoliberalismo se contorceu como um circense para maravilhar as massas, convencendo de uma fantasia que favorecia um Estado muito mais ativo do que no liberalismo. Ao invés de leis impostas pelo governo, o Estado cedeu à vontade neoliberal de tentar completar a falta inerente do mercado. Exemplos como a bolha especulativa estourando em 2008 podem ser encontrados, em escalas menores, em toda a história da hegemonia do capitalismo. “Na verdade, o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social.” (SAFATLE, 2021). A diferença sendo que o Estado agora defende os interesses do mercado, a qualquer custo.
Ao comparar simploriamente esses dois sistemas econômicos, é interessante pensar na descrição feita por Miller (1996) sobre “A máquina pan-óptica de Jeremy Betham”, em seu livro Matemas I. Quando Betham desenvolve esse dispositivo polivalente de vigilância, ele cria um espaço com múltiplos propósitos mas com as mesmas bases: uma edificação fechada e circular, onde seu centro é um único ponto que enxerga o resto da circunferência inteira; em sua extremidade interior, celas que podem ser facilmente vigiadas. Em sua apropriação, Miller elege o pan-óptico como “o modelo do mundo utilitarista” (p. 27). Nele, o exterior e o coletivo de prisioneiros não é computável, ele é inteiramente voltado para uma tópica interior; a transparência dos vigiados é perfeita, enquanto a vigilância se mantém no centro de tudo. A causalidade não é suportável, todos os artifícios servem para um propósito e são úteis; máquinas.
Por pensar na metáfora pan-óptica por um olhar liberal, Miller exemplifica o terceiro que circula pela prisão como visitantes externos, mas o genial do neoliberalismo é universalizar o dispositivo e internalizar esse exterior que controla. Ao invés de um público que humilha os exclusos, eles mesmos conseguem fazer esse papel na pós-modernidade. Assim, o espetáculo pode se tornar metafísico e embarcar toda a população em seu horizonte sem ter uma liberdade concreta deste modelo.
De fato, são intervenções diretas aos conflitos sociais, no modo que o indivíduo interage com a sociedade e como se vê dentro dela. Mais que um modelo econômico, é uma engenharia gregária que introjeta o mercado na psique e continua a se espalhar, é passar do social ao psíquico e reformar o reflexo imaginário do sujeito para se tornar otimizador de mercados. A pregação chega a ser simplória: você é um empreendedor de si mesmo. Não é necessário um Estado para te dizer o que fazer, onde pertencer ou o que ser. É a “formalização da sociedade com base no modelo da empresa” (FOUCAULT, 2010).
Um dia proletariado, uma força de trabalho à venda, agora o sujeito tornou-se um empresário com um capital de competências a gerenciar conforme uma lógica de maximização do resultado de seus investimentos. Impressionantemente, isso consegue ser visto como uma transição natural do mercado. O espetáculo proporcionou toda uma sala de espelhos ao redor da sociedade pela pós-modernidade para fazer crer-se responsável por tudo o que lhe ocorre, como se suas ações e gastos de tempo fossem para seu próprio crescimento. O indivíduo é como uma empresa, quanto mais coloca, mais (teoricamente) ganha.
Sobre a inespecificidade do conceito de “liberdade” prometido pelo neoliberalismo, um dos capítulos de Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (DUNKER, 2021) destaca as características principais dessa abstração em quatro fundadores da concepção neoliberal: Friedrich Hayek, Milton Friedman, Ayn Rand e Gary Becker. Já passamos pelas destacadas por Friedman, e os outros não divergem muito longe. Para Hayek, a intervenção estatal de controle sob a economia reverberaria no psicológico do povo; o que importa é o individualismo e a moção econômica. O estado deve se limitar a garantir o funcionamento da livre-concorrência, só legislando para responsabilizar os indivíduos pelas consequências de suas ações.
Ainda que representante da ideia mais geral do que muda com o neoliberalismo, Hayek sozinho não define todas as evoluções desse sistema. A filósofa Ayn Rand acrescenta outros parâmetros que podem ser identificados na mutação atual. Para ela, a liberdade não é nada que se possui, mas sim um conceito negativo. Diferentemente de um acréscimo, a liberdade seria a ausência de coerções estatais sob o indivíduo. A função válida do Estado se limita a proteger o direito à vida, à liberdade, à propriedade privada e a busca da felicidade. Sendo o direito à propriedade a premissa de base, Rand defende que o capitalismo é o único meio possível para a liberdade; seja livre para buscar sua própria felicidade, ou seja, egoísmo.
O quarto fundador do conceito de neoliberalismo citado no livro organizado por Dunker é um dos principais patriarcas da Escola de Chicago: Gary Becker. Dentre os abordados nesse capítulo, esse discípulo de Friedman cria um pressuposto de maximização de utilidade, regido por um sistema de preferências individuais, que consegue se ampliar para uma análise macroeconômica do comportamento humano. Becker não adapta o pensamento econômico para a compreensão do indivíduo e suas escolhas, ele já basta para explicar o comportamento. Cria-se assim uma matriz psicológica implícita, ao mesmo tempo que o sujeito sustenta, ele é moldado pelo neoliberalismo. Sua base, diferentemente da de Rand sobre a propriedade privada, é que o indivíduo fundamentalmente se comporta a partir de um pensamento maximizador de seus recursos limitados. Consequentemente, não há diferença lógica entre pequenas e grandes escolhas, a economia é transposta para o todo da humanidade. Becker usa o individualismo como sua metodologia, focando apenas no comportamento, ignorando as causas, e generalizando para a sociedade; “o todo é a soma das partes”. Por associação, não há espaço para o outro nesse cálculo, o que importa é o indivíduo.Mesmo não englobando a totalidade do sistema neoliberal, o pensamento de Becker traz pontos importantes de um mercado que se faz o ponto-pivô da sociedade. O seu sujeito, esse constituído pelas escolhas que efetua, se torna uma unidade decisória abstrata que pode tomar forma tanto de um indivíduo como de uma empresa. Sendo assim, a empresa também deve ser concedida os mesmos direitos que o resto dos cidadãos são privilegiados pelo Estado. Ao mesmo tempo, esse individualismo anula a necessidade de uma resposta ao outro, já que todas as escolhas são responsabilidade individual. Ainda que absolva alguns de culpa (como os bancos), essa lógica restitui a todos dentro desse regime uma incumbência sob sua própria felicidade.
O fascinante sobre a filosofia de Becker é sua simplicidade sobre o comportamento humano; até mesmo o tempo é um recurso calculado para sua maximização de consumo. Não deve haver alternativa e os objetos de desejo são horizontalizados. Seja o que for que queira, ele vale tanto quanto a vida, não há diferenciação entre o gozo. Restos de qualquer forma são inaceitáveis, a mais-valia precisa ser utilizada para algo. Se pensarmos assim, é inválida a diferença entre normal e anormal, já que todos são indivíduos livres, responsáveis e maximizadores de resultados. A psiquiatria se adaptou bem ao se render ao mercado e medicamentalizar todos, sem nenhuma distinção ou preconceito. O neoliberalismo é o capitalismo puro, extraído para driblar restrições morais.
O que o liberalismo prometia era uma garantia de que os indivíduos seriam incitados a perseguir seus interesses, a produzir riquezas úteis para si e para os outros, e, por meio delas, produzir felicidade. A clássica ideia capitalista de “um por todos e todos por um”, trabalhamos para ganhar e todos ganharão com o nosso trabalho. O Estado estava lá para garantir instrumentos controladores de produção do bem-estar da população, regulamentar riquezas e servir como um grande Outro para direcionar a sociedade. Era um governo utilitarista, ele media as consequências e probabilidades para um bem comum.
Com a ideologia fordista massificada e os exércitos alistando compulsoriamente, o pan-óptico estatal aproveitou dessa rotina para fixar regras invioláveis, garantir a vigilância constante e supervisionar a disciplinarização e reabilitação dos desviantes do status-quo (BAUMAN, 2010). Esse esquema exige uma relação dialética entre o senhor e o escravo, é preciso de um Pavlov para garantir a reprodução sem variações da estrutura. Essa modernidade “sólida” quase garantiu ambientes duráveis e regras dignas de serem memorizadas, mas o capitalismo encontrou soluções menos custosas para manter a ficção de uma felicidade atingível.
Em seu seminário A Escrita do Sintoma, Ivan Corrêa (1997) explica magistralmente a impossibilidade lógica de uma felicidade como completude. Relembrando o estatuto simbólico da castração em Lacan, Corrêa parte da constatação posterior de Lacan sobre os efeitos do significante da falta no Outro. Se até mesmo aquele que deveria dominar todo o saber possui um furo, o que será dos sujeitos eminentemente barrados? Pela linguagem, o simbólico, o campo do Outro introduz uma negação e cria a possibilidade de diferenças e ambivalências nos discursos. Mas, se a falta é inescapável, consequentemente a completude não é possível. O sujeito nunca seria completo pelo Outro, já que este também possui um furo.
Nessa lógica, o Mercado encontrou uma falha que precisa ser preenchida na instituição estatal que se diz onipotente. Como toda a boa anomalia, o neoliberalismo não veio para atrofiar algo do governo. Ao contrário, ela indica, ela constitui, o indexador geral sob o qual se deve colocar a regra que vai definir todas as ações governamentais (FOUCAULT, 2004). E, como o contágio começou com o dólar, não é de se surpreender que o neoplasma em primeiro lugar é o estadunidense.
Chamado de “anarcocapitalismo” por Foucault, os Estados Unidos criaram uma política social privatizada, onde o objetivo é o ótimo crescimento do mercado a fim de engendrar o máximo crescimento, que será a única política social verdadeira possível nesse novo regime. É preciso instalar um ambiente concorrencial ao qual os indivíduos empreendedores devem se adaptar.