Perversão

O que caracteriza a perversão como uma estrutura clínica? Quais são as especificidades que possibilitam um diagnóstico diferencial da perversão? Dizer que “a perversão é o negativo da neurose” (Freud, 1905) não nos dá uma direção clara além de colocar a perversão como um sonho neurótico impossível de ser conquistado. E, afinal, por que essa estrutura é tão cobiçada pela neurose? Tem-se como mito de que o perverso é aquele cujo gozo se encontra à céu aberto, ou seja, ele dispõe de todas as modalidades de gozo possíveis sem nenhuma restrição pelo Nome-do-Pai. Para desmistificar a estrutura perversa,  Luis Izcovich escreve um célebre livro sobre “A perversão e a psicanálise”, onde descreve a perversão como “aquele que imagina ser o Outro para assegurar seu gozo, ao passo que o neurótico é o que se imagina ser um perverso para se assegurar do grande Outro”. Vejamos o que isso significa.

A perversão, de uma maneira geral, se encontra no cerne de toda a sexualidade humana. Todos iniciamos a vida como “perversos polimorfos”, nada se sabía sobre objetos específicos, éramos seres que buscavam prazer indiferentemente da fonte; era o prazer pelo prazer. Portanto, toda a sexualidade humana é de natureza essencialmente perversa; a norma sexual não existe. “Toda sexualidade humana é perversa, se acompanhamos bem o que diz Freud. Ele nunca conseguiu conceber tal sexualidade sem ser perversa” (LACAN, 1975-1976/2005, p. 153). Mas o que diferencia elementos perversos de uma estrutura propriamente perversa?

Para que possamos falar em uma estrutura perversa, é preciso levar em consideração o gozo da mulher, específico e suplementar (suplementar, mas extra-linguagem, extra-simbólico). Lacan, em seu seminário De um outro a um Outro, afirma que “a perversão é a estrutura do sujeito para quem a referência da castração, isto é, o fato de a mulher se distinguir por não ter o falo, é tamponada, mascarada, preenchida” e foi nesse mesmo seminário, comentando sobre o caso Hans, que Lacan diz que o fetiche é um substituto do falo que falta na mãe. Sabemos, desde Freud, que a defesa do perverso perante a castração do Outro materno é a denegação (Verleugnung), o que significa que, assim como na neurose, a falta comporta uma consequência irredutível, o sujeito sabe que a castração existe. Mas, de um modo concomitante, comporta-se como ela se não existisse. Dito de outro modo, no caso da perversão há um acesso direto ao gozo: o sujeito sabe o que é preciso para o seu gozo, e ele também sabe onde buscar. 

Existe uma oscilação entre saber e não-saber na perversão, o que pós-freudianos chamaram de splitting (“divisão do eu”)Uma cisão do eu ocorre na perversão, o eu se dividir faz com que seja possível que ideias contraditórias sejam mantidas em uma mesma instância psíquica (SE XXIII, p.204). Sabe-se da diferença anatômica dos sexos, mas o perverso se recusa a aceitar que seu Outro não pode ser completado. E, para substituir essa falta, cria-se o fetiche. O sujeito inventa um saber fazer com o falo para recobrir a castração.

Tanto em Freud como em Lacan, podemos ver a separação nítida entre neurose e perversão, das psicoses, sendo essa última uma falha completa da inscrição do significante Nome-do-Pai. E qual seria a diferenciação entre os mecanismos de negação da neurose e perversão? O pai na perversão foi simbolizado, pelo menos até certo ponto, por causa dos sintomas ligados à castração que se formam. Mas essa simbolização não é tão completa quanto na neurose, o pai não conseguiu encarnar a Lei. Assim como as outras duas formas de negação, o desmentido diz respeito ao pai. Mas esse é incapaz de exercer sua função paterna, seja por causa de uma mãe que solapa sua proibição ou por causa de uma “mãe-santa”.

De acordo com Izcovich, “A mulher santa” seria aquela que fez de seu filho, ou filha, o falo que a completa como mulher; e isso de tal modo que ela é capaz de fazer com que o desejo por um homem seja algo do qual ela pode se excluir. Assim, o perverso entra para tapar o furo que se pode perfilar no Outro. “A mulher santa” é aquela que aparentemente não tem nenhum gozo, mas que espera como contrapartida que seu filho lhe confira o único gozo válido na existência.

A singularidade do sujeito perverso consiste em fazer com que exista A mulher, A mulher não barrada. Ele dedica-se a fazer existir o “ao menos uma” que não esteja concernida pela castração, o que é um outro modo de frisar o interesse perverso pelo gozo feminino. E é ele, como o possuidor do falo, que tentará constantemente criar A mulher. Ele “identifica-se como objeto imaginário do desejo materno, na medida em que a própria mãe o simboliza no falo” (Lacan, 1958/1998, p.561). Pode-se pensar, de acordo com Fink (1997), que o perverso passou por uma alienação, pelo recalcamento primário, mas não passou pela separação do desejo materno. Ele desempenha o papel de objeto: o objeto que preenche o vazio do Outro. Se ele é o falo da mãe, nunca acederá a uma posição simbólica.

Se a marca do falo sobre o gozo é o que introduz a dimensão do desejo num sujeito, o que sobra de desejo para a perversão? No nível do desejo, Lacan sustenta que o perverso está identificado com a forma imaginária do falo [da mãe]. Então, o filho fica submerso no Outro como demanda e não pode adotar uma postura própria, estando ele preso em um estágio anterior ao recalcamento secundário, que é o que permite a denominação da falta e, portanto, da irrupção de um desejo próprio do sujeito.

O perverso se faz parceiro do Outro. Ele precisa de um Outro em relação ao qual tomar posição. Dito de outro modo, é assegurando o gozo absoluto do Outro que o sujeito assegura para si o seu próprio gozo. Não há perverso sem Outro; e, para convocar o Outro, ele precisa, na maioria dos casos, de um semelhante. 

Na perversão, o característico é colocar objetos no lugar da falta. Ao invés de um desejo calcado na metáfora, o perverso, preso em uma prevalência do imaginário, está constantemente evidenciando o deslocamento do objeto do desejo de uma forma metonímica. “Nada mais monótono que o modo de gozo perverso”, no qual a repetição do gozo não cessa de produzir prazer. O perverso goza com a própria tentativa de impor limites a seu gozo. A repetição do ato não comporta necessariamente uma mudança quanto a economia de gozo, e é isso que se traduz na monotonia da repetição do ato perverso — o qual não se reclama. 

Esta é a aposta da experiência analítica nos casos de perversão: que o gozo seja afetado. Podemos pensar em uma clínica possível da perversão quando incidimos neste mesmo gozo que não cessa. É preciso fazer o Outro existir, para que esse mesmo Outro possa ser barrado e o perverso possa emergir como algo diferente de um objeto imaginário do desejo da mãe. Mas essa clínica encontra com seus próprios desafios, como  uma dimensão de competição entre o perverso e o analista, esse último nunca podendo entrar nesse jogo. A estratégia de defesa do perverso em análise é, de modo constante, uma intenção de desalojar o Outro da posição de objeto. Ele quer se colocar na posição de objeto a para o Outro e, consequentemente, mudar a posição do analista para uma de sujeito barrado. A questão é crucial no que se refere à clínica analítica: como uma prática de palavra pode afetar o gozo, que é sempre relativo ao corpo.

O perverso sofre com a impossibilidade de dar nome a alguma coisa que tem a ver com o desejo do Outro materno, já que não é o pai que ela deseja. Ele se vê diante de uma falta de falta que é geradora de angústia ao não conseguir simbolizar a falta no Outro. Pela separação, o objeto como desejo do Outro ganha precedência sobre o sujeito ou o subjuga, mas isso não acontece na perversão. O que consiste a travessia da fantasia perversa é o sujeito subjetivar a causa da sua existência (como o desejo do outro, ou seja, posição de objeto a) e se caracterizar por ser desejante. 

A perversão goza do simbólico por meio do recurso imaginário, mas é a adjunção, a intrusão do real que muda radicalmente as cartas do jogo. Borromeanamente, o perverso é apresentado por Lacan como aquele para o qual os três círculos (R, S e I) não estão atados, mas empilhados, superpostos. Lacan, no Seminário XXIII, afirma: “A perversão não é definida porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompidos, mas, sim, porque eles já são distintos, de modo que é preciso supor um quarto que, nessa ocasião, é o sinthoma” (p.19). É nesse seminário que Lacan caracteriza o pai como um sinthoma, ou seja, aquele que estabelece o laço enigmático e único para cada sujeito entre os três registros. O sinthoma constitui uma suplência da carência paterna e permite o enlaçamento, e o perverso vai tentar encarnar a Lei sempre que possível para manter os seus registros enodados entre si. 

“…perversão [perversion] quer dizer apenas versão [version] em direção [vers] ao pai [père] -, que, em suma, o pai é um sintoma, ou um sinthoma, como quiserem. Admitir o laço enigmático do imaginário, do simbólico e do real implica ou supõe a ex-sistência do sintoma.” (Ibidem, p. 19). Lacan brinca com a palavra perversion para aproximar os conceitos de sinthoma e perversão, sendo a père-version uma alusão ao pai real. Esse, por sua vez, é aquele pai da horda primeva que sustenta a universalidade do homem nas fórmulas de sexuação. Já não se fala mais de função paterna como na Primeira Clínica, agora se tem versões paternas e o perverso é aquele que cria sua versão eventual e singular da Lei. Temos a pluralização dos Nomes-do-Pai e, consequentemente, torna impossível a normatização simbólica a partir de um pai morto. 

Algumas estruturas da perversão

O masoquismo

Em uma primeira instância, poderia-se pensar o masoquismo como a instrumentalização do sujeito perverso em detrimento do gozo do Outro, mas isso seria apenas um véu da fantasia masoquista que encobriria o verdadeiro objetivo de seus atos. Embora o masoquista queira crer e nos faz acreditar que “visa ao gozo do Outro”, a realidade é que “visa realmente à angústia do Outro” (SE X, p.195). O masoquismo pode ser visto como a forma mais pura de perversão pois sua solução à necessidade de separação se dá em orquestrar todo um cenário em que seu parceiro, colocado no lugar de Outro, é quem dita a lei para o masoquista – lei essa de abrir mão de um certo gozo.

“O masoquista tenciona evidenciar […] é que o desejo do Outro produz a lei” (SE X, p.120). E, muitas vezes, o parceiro é empurrado até o limite para que imponha o seu desejo como uma censura de gozo, sendo colocado em extrema angústia pelo masoquista. Então é o desejo do próprio masoquista que dá as ordens: ele obriga o parceiro, como Outro, a ditar as leis. É uma maneira de usar o seu próprio desejo para forçar um substituto paterno, sendo o masoquista obrigado a promover sua própria separação como parte integrante da castração.

O masoquista, assim como o fetichista, continua a ser um objeto imaginário para o desejo do Outro, nunca conseguindo ascender ao status simbólico dado pela castração e os limites nunca passando de meras expressões do desejo paterno. O pai do masoquista é aquele que o próprio gozo que impõe os limites, sendo a argumentação à base do “porque é assim que eu quero”. É a Lei Moral, originada na voz do pai e calcada no gozo do Outro, que é aceita pelo masoquista em lugar da lei, na ausência da lei. 

O perverso, diferentemente do neurótico, parece saber que há sempre um gozo relacionado com a enunciação da lei moral. Portanto, o pai não é imparcial e desinteressado como crê o neurótico, ele também goza de sua posição como ditador das leis. 

Sobre a imagem típica de um masoquista que sofre nas mãos de um parceiro, podemos pensar o castigo como uma forma de alívio ao masoquista já que é uma prova de que existe alguém que lhe pede um sacrifício e cobra no real da carne. A dor não é o essencial do masoquismo, é só um sinal de que o parceiro concordou em assumir o lugar de Outro para lhe impor uma condição, um limite. 

Em relação à esse tema, Izcovich escreve que “o masoquismo é exitoso, então, porque assegura uma estrutura de desejo estável que protege o sujeito das contingências.”, ou seja, o masoquismo é exemplar para o estudo das perversões porque o sujeito perverso se coloca como apenas aquele que sofre de uma ação vinda do Outro, protegendo-se de subjetivar seu próprio de desejo.

O sadismo

Lacan afirma que o sadismo não é o avesso do masoquismo (SE X, p.196), mas existe uma alternância entre eles: “o que está em nível secundário em cada um, velado, escondido, aparece no outro no nível do objetivo. […] O que se esconde por trás da busca da angústia do Outro, no sadismo, é a busca do objeto a”. E esse objeto só passa a existir em decorrência da lei que lhe é aplicada (do desejo do Outro). O que o sádico visa não é a angústia de seu parceiro, mas aquilo que ela atesta: o objeto ao qual se aplica a lei.

O sádico faz um duplo papel: o de legislador e o de submetido à lei. Como a lei não foi atuante em sua constituição, ele mesmo desempenha o papel de Outro em seu cenário e procura extrair para sua vítima o objeto que a lei se aplica. A angústia da vítima é a prova da enunciação da lei, prova de que a lei que exige a separação existe. O próprio sádico desempenha o papel de Outro e de vítima ao mesmo tempo, ele goza com a encenação da própria castração que deveria exigir uma perda de gozo. Mas a castração nunca se completa, o perverso continua a ser um objeto do desejo do Outro, nunca se tornando um sujeito valorizado por suas realizações simbólicas. 

“O que, visto de fora, parece uma busca irrefreável e irrestrita de satisfação por parte do próprio perverso é, na verdade, uma espécie de defesa: a tentativa de fazer surgir uma lei que suspenda seu gozo, que o refreie ou detenha no caminho para o gozo”. (SE X, p. 166)